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quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

Um show de técnica e esportividade

UM SHOW DE TÉCNICA E ESPORTIVIDADE
(Texto revisado e reeditado, extraído do Livro PEQUERI, do mesmo autor)

Uma límpida e ensolarada tarde de inverno, naquele domingo festivo de julho de 1968. A pequena e bela São Pedro do Pequeri vive o ápice do seu Primeiro Encontro dos Pequerienses Ausentes, iniciativa do então prefeito, Júlio César Vanni, e isto era um motivo a mais para o Estádio Valentino Ângelo Granato achar-se tão alvoroçante e com tantos torcedores, entre os quais muitos visitantes do Rio de Janeiro, gente bonita vinda das imediações, membros das inúmeras e tradicionais famílias participantes do célebre evento. Ouviam-se estrondos sucessivos de fogos, batucadas, gritos na plateia... Transcorre o início do primeiro tempo da partida preliminar entre o Esporte Clube Pequeriense e uma equipe convidada da região, cuja procedência, peço mil desculpas ao leitor pelo lapso de memória, mas sei que tratava-se de um time surpreendentemente forte, haja vista a decepção do povo local, já amargando o placar de 1 x 0 em favor dos visitantes. Tal situação, em absoluto, não era digerida e nem se coadunava com um povo habituado a memoráveis conquistas. Muito menos em tão jubilosa ocasião. Em um ponto isolado da torcida, as gargalhadas que se ouviam a todo instante, eram por conta do único capaz de dissimular um pouco a tensão do momento, o antológico personagem pequeriense, Antonio da Chiquinha, poeta, professor, compositor, músico e sobretudo palhaço. De longe e com tanta algazarra à volta, era impossível captar o conteúdo daquele show à parte, mas podia-se avaliar por sua performance coreográfica, dando seguidas cambalhotas no estreito espaço entre a lateral do campo e o alambrado. O ex-treinador e habitualmente sisudo, Ed Cortes Costa, que se encontrava por ali, gritando com os jogadores e fumando um cigarro após o outro, por um instante permitiu-se esquecer do placar e soltou uma de suas risadas, que na verdade era um tipo bizarro de fenômeno sonoro, algo comparável a um veículo desgovernado derrapando perigosamente numa pista cascalhada:
- Huá-huáááááááááááááááááááááááááá...
Mas o estresse de quem estava do lado de dentro do gramado era crescente, como se pairasse no ar um prenúncio do que estava para acontecer. Neste momento, o professor Zezé Vicente vai deixando o campo pulando numa perna só, com muitas caretas de dor, depois de ter seu tornozelo esquerdo maudosamente atingido pelo “número dois” adversário. A partida está paralisada e o atual técnico, Ascânio, sinalizava apressado, convocando o jogador Ranulpho Sales ,que já se aquecia junto à linha lateral, para proceder a substituição. - Há que ser bem frisada a questão do treinador oficial, pois bastava alguns segundos de paralisação na partida e vários outros “técnicos” avulsos também invadiam as quatro linhas para transmitir cada qual suas enérgicas orientações aos atletas, aproveitando que, nessa ocasião, o único obstáculo entre torcida e jogadores era um surrado conjunto de caibros de madeira servindo de parapeito, suspensos por uma série de estacas equidistantes, fincadas no chão ao longo de todo lado leste, já com falhas em diversos pontos. Ou seja, não havia o menor sacrifício para quem quer que fosse, entrar para onde estavam os times. Tanto não estou exagerando, que Raimundo Peão já se encontrava próximo ao grande círculo do campo, com várias cachaças no espírito, agitando um chicote usado para adestrar animais, xingando aos gritos a mãe de alguém da torcida local que o provocara. Por tratar-se de um personagem folclórico da comunidade, isto era apenas um item a mais de diversão dentro do ambiente comemorativo, exceto para seu filho, o Ailton, que entrou correndo pelo gramado, com seu porte físico Tarzã, meneando a cabeça seguidas vezes em completo constrangimento. Após insistentes argumentos, lá vinha o Ailton puxando o pai pelo braço, enquanto Raimundo Peão fazia força em sentido contrário, teimando em voltar, prosseguindo o exclamatório em altos brados...
-É a mãe! Vai falá com a véia!!
Nervoso, o Juiz fazia uso do apito para tentar esvaziar o campo e recomeçar o jogo, enquanto Primo Granato , fingindo nem ouvir os apelos do árbitro, cochichava algo gravíssimo no ouvido do jogador Ranulpho. Frisa-se o “gravíssimo”, pois as palavras do homem eram acompanhadas por gestos que ele fazia com a inseparável bengala, simulando uma espada pontiaguda atravessando a barriga de alguém. Ranulpho o ouvia, movendo afirmativamente a cabeça, como o discípulo que acata as ordens do mestre sem contestar.
Enfim o jogo é reiniciado. Ainda inconformado com esse maldito placar e com a apatia revelada pela equipe da qual já fora o técnico oficial alguns anos antes, o temperamental e espalhafatoso italiano, Primo Granato, vai agora caminhando enigmático junto à lateral do campo, no seu conhecido jeito de coxear a perna deficiente, auxiliado pela bengala. Ele era de baixa estatura, mas bastante robusto, destemido, usava o timbre possante da voz como uma de suas armas de intimidação durante as encrencas, com as quais era bem familiarizado. Seu formato craniano, típico de todos os homens daquela numerosa e tradicional família de imigrantes, estava oculto por um chapéu de feltro, e os óculos de grau de lentes grandes completavam o autêntico perfil de um capo da Cosa Nostra. Ele acabara de decidir consigo mesmo, sem pedir opinião a mais ninguém, optar por uma tática extrema que, no seu tempo como treinador, costumava reverter o placar em questão de minutos, quase como numa intervenção sobrenatural do padroeiro São Pedro. (Tudo isto ele me contaria pessoalmente, mais tarde). Primo Granato caminhou sem pressa pela lateral até alcançar o lado norte do campo, posicionando-se bem atrás do goleiro adversário.
A partida acabara de ser novamente paralisada e o ambiente entre as equipes chega próximo à ebulição. Ranulpho Sales, que parece ter entrado em campo com um único propósito, no primeiro lance em que se defrontou com o tal “número dois” que tirara o Zezé da partida, partiu correndo na direção dele, mais lembrando um caminhão na banguela, os dois colidiram peito a peito com tal impacto que o jogador visitante rolou inúmeras vezes no chão, indo parar embaixo do alambrado. Companheiros de equipe correram em bloco para cima do árbitro, exigindo expulsão, incluindo o goleiro, fato que obrigou o homem da bengala a adiar um pouco a execução do seu plano secreto. Como já era cena normal em todos os momentos de interrupção do jogo, Sebastião Granato, que já atuara no E.C. Pequeriense algumas décadas antes, e, segundo diziam os antigos, fora dono de um dos chutes mais potentes da história, já se encontrava próximo da meia lua da área passando um sermão técnico ao jogador Galo:
- Cê tá dando espaço pro adversário dominar a bola! Isso não pode acontecer, meu filho!! Dá duro em cima dele!!
Em um outro ponto ouvia-se a voz esbravejante do técnico, esclareço, do técnico oficial, Ascânio Gouveia Matta, esculachando o centroavante, que hoje estava como que se arrastando pelo campo:
Quer passear? – Gritava Ascânio - Então vai pra casa, pega a namorada... Aqui não !! Aqui não!!
Evidentemente, esse quadro de sonolência generalizada que assolava a equipe, devia-se ao grande baile de gala no Clube Social Pequeriense, animado pela orquestra El Dorado, como parte dos eventos comemorativos, baile este que acabara por volta das quatro da madruga e contou com a presença empolgada da maioria dos atletas.
Apenas dois minutos após a bola voltar a rolar, um descuido infantil da defesa local permite aos visitantes retomarem a bola e fazerem o seu segundo gol, e isto era simplesmente, absurdamente, completamente inadmissível, ante à celebração do Primeiro Encontro dos Pequerienses Ausentes. O defensor Rauphinho discute irritadíssimo com o goleiro Paulinho da Luzia, cada qual querendo jogar a culpa do fracasso um no outro.
- Assim não dá, uai! - acusava Rauphinho, desesperado. - Ocê faz que sai mas não sai, uai!!
Para complicar sobremaneira as coisas, no lance do gol, houve a impressão de que o atacante deles estava em posição de impedimento. Considerando que, nesse tempo, os jogos de futebol, mais especificamente esses amadores, de cidades de interior, ainda representavam, única e tradicionalmente, o genuíno amor à camisa, aquele belo e telúrico romantismo que hoje já cedeu lugar às politicagens e interesses financeiros, nesse tempo, o mais importante mesmo, acima de tudo, era a vitória, conquistada com um suor procedente do coração. Não se cogitava lucros, nem fama. Queria-se a vitória, pela honra de se estar defendendo a terra das raízes, da família e dos amores.
Enquanto os protestos e xingos ferviam entre a torcida pequeriense, atrás da baliza norte do Estádio, Primo Granato sentia-se, mais do que nunca, com o espírito imbuído naquele romantismo citado no parágrafo acima, disposto a colocar em prática imediatamente, a sua técnica de São Pedro. Ele mal esperou o goleiro retornar das comemorações do gol, e já foi desfechando:
- Olha aí, meu rapaz: Eu, se fosse você, dava uma colaborada aí conosco. Veja só: A cidade está em festa, todo mundo querendo comemorar... basta ocê deixar entrar uns golzinhos aí e fica tudo bem. Depois procura a gente lá fora, que ocê não vai se arrepender...
Ouvindo isto, o goleiro voltou-se, abruptamente, ainda sem acreditar no que acabara de ouvir. Afinal, ele também amava seu time, suas raízes... Embora as primeiras palavras tenham sido ditas num tom surpreendentemente amistoso, agora, ao encarar o olhar penetrante por trás daqueles óculos de grau, o goleiro chega a sentir um calafrio. Tal sensação virou pavor propriamente dito, quando o homem apontou-lhe a bengala na direção do rosto, e completou, com aquela sua voz de um grave cortante, agora num tom que já não lembrava outra coisa senão o rosnado de um doberman pronto para o bote fatal:
- Foi isso mesmo que ocê ouviu, seu fiedapuuuuta!. Isso, se quiser ir embora pra casa hoje, direitinho, sem nenhum problema...
Primo Granato executou sua tática de São Pedro e retornou tranquilo pelo mesmo caminho, junto à lateral, podendo reconhecer ao longe o Piquitito dentro do campo, gesticulando aflito na tentativa de acalmar seu filho César Calzavara, que atuava na defesa e estava a fim de agredir o juiz por causa do impedimento não marcado. Para o leitor não pequeriense, cabe esclarecer que, César Calzavara, com seu biótipo de uma robustez hercúlea, era como um tanque blindado, uma máquina de agressividade e encrencas, não distinguindo local nem ocasião. Ao ser encarado pelo árbitro, que simulava levar o apito à boca para expulsá-lo, César apontou-lhe o dedo, mesmo tendo o pai e o irmão Washington agarrando-lhe fortemente pela cintura:
- Se me expulsar, eu te pego depois lá fora! – A atitude do grandalhão tinha pleno respaldo da torcida local, em especial do exaltado grupo de solteironas comandado por Léa Micheli e Araci Germano.
O jogo mais uma vez recomeça, e as disputas de bola chegam a lembrar um combate medieval.
- Isso não tá me cheirando bem... – Cochicha, junto ao alambrado, o jogador titular Roberto Secundino, no ouvido do companheiro Sinval Sales, como numa profecia.
- Recua um pouco, meu filho!! Tá muito adiantado!! - grita novamente Sebastião Granato em desespero, ao ponto de estar com um pé do lado de dentro do campo. Nesse instante, a bola cai outra vez no pé do já visado “número dois” adversário, que corre e prepara um lançamento para o setor esquerdo, mas não chega a fazê-lo porque no seu caminho surge um pé de chuteira, que era de César Calzavara, que o atinge logo abaixo do umbigo, mandando-o para o chão como quem fora atingido pelo trem de Mar de Espanha.
Agora não há mais argumentos nem espírito para protestos ou reclamações. Cinco ou seis jogadores visitantes avançaram ferozes para cima do agressor, confrontados por outros sete ou oito pequerienses que também partiram na mesma direção, e em segundos já eram os vinte e dois brigando e mais os torcedores de ambos os lados que começaram a invadir o gramado; havia agora homens de terno e gravata batendo e apanhando entre os uniformizados; Paulinho Vanni arrancava ripas da cerca do quintal de Zé Granato e as distribuía aos companheiros combatentes em meio ao tumulto de xingatórios, pontapés de um lado, socos e empurrões de outro, tapas, chutes, tombos; o grupo de Léa Micheli partia em disparada, mas no rumo do portão do estádio, no mesmo instante em que Seu Modesto recolhia mais que depressa a sua cadeirinha cativa e sumia pelo quintal adentro; Bastião Granato afastava-se do centro do conflito, já sem os óculos e com um ferimento sangrando no alto da careca; seu irmão, Primo Granato, acabara de quebrar a bengala na cabeça do técnico adversário, e com a metade pontiaguda que lhe sobrara, agora queria a todo custo espetar a mulher desconhecida que invadira o campo e o atingira pelas costas com um objeto cortante, precisando a interferência apavorada do seu filho Murilo Granato, que gritava para seu primo grandalhão:
- ô Ronaldo! Ajuda a controlar papai aqui, senão...
- Deixa ele vir!! Solta ele!- Esses eram gritos do treinador Ascânio, segurando na mão uma ripa e já sem nenhum botão na camisa. Houve um estrondo acidental de foguete, causando uma fumaceira nas proximidades do vestiário, misturando-se cheiro de pólvora queimada ao forte odor de óleo massageador, e nada aplacava a ira de Primo Granato, que há tempos já não sabia do paradeiro do chapéu nem dos óculos; seus impropérios agudos sobressaíam em meio às centenas de vozes exaltadas falando e gritando ao mesmo tempo. Ele fazia referências ao lutador verdugo do tele-cath:
- Deixa esse fiedaputa vir que eu faço co’ele igual o caveira!!... Pode vir!
À parte da confusão, Roberto Secundino, no pique de sua forma física e técnica, já uniformizado com camisa e meias vermelhas, calção branco, só faltando as chuteiras, zanzava inconformado de um lado para outro, reclamando indignado com os companheiros titulares, Totõe Pavão e o goleiro Carrapato, todos já preparados para a grandiosa partida principal. E pensar que o craque Roberto planejava um show de bola especial nesse dia, dedicado à sua musa eleita que estava na torcida, a bela Luíza do Zózimo, cujo tio Juquinha Sales se afastara da briga todo suado e escabelado, depois de ter dado e levado inúmeros bofetões, achando graça de si mesmo, exibindo o enorme rasgo na camisa novinha que estreava nesse domingo. Mas no campo a pancadaria continuava:
- Você sabe com quem cê tá falando?? Eu posso lhe prender!!
Eram palavras ameaçadoras de um tenente da 4ª. GAC de Juiz de Fora para um desconhecido que o ofendera, discurso que foi violentamente interrompido com um pé-de-ouvido que o tenente recebeu por trás, sem ter tido condições de identificar o agressor, golpe que o arremessou desorientado de encontro a Ronaldo Matta que sobressaía-se na multidão por causa da estatura, tentando em vão acalmar os ânimos, justamente quando um novo foco de pancadarias surgiu nas proximidades do vestiário, e era outra vez Primo Granato agredindo alguém com seu toco de bengala, agora sobrando para Antonio Matta tentar detê-lo, e eram tantos solavancos e safanões, que o relógio de pulso de Antonio Matta transformou-se num objeto inútil pendurado em seu braço.
O conflito só deu sinais de acabar quando a voz exaltada e revoltada do chefe da delegação visitante, entre xingos e gritarias, anunciava a retirada do seu pessoal do estádio e daquela cidade, para todo o sempre, pondo assim um fim inesperado naquilo que deveria ser mais um grande item festivo do Primeiro Encontro dos Pequerienses Ausentes. Ao lado de Luiz da Rosa e do ex-prefeito Luiz Bastos, o atual chefe do município, Júlio Vanni, contemplava o acontecimento como se estivesse presenciando a demolição de um valioso patrimônio histórico. Assim também reagiam aqueles que ali estavam a fim de assistir algo mais próximo do civilizado. Foi realmente um evento modelo, um grande show de técnica e esportividade.
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